1 - NASCER
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nascer
escorrega a noite:
vai-se embora,
soturna brisa,
e deixa a saudade escorrendo
nos copos esquálidos
jateados de saliva
e lábios
eis que, por encanto,
o eclipse marinho
se desfaz
todos os dias:
aquele sol não se põe
mas brinca
esconde seu brilho
por detrás da lua
e, quando se cansa,
brota-se, metódico,
por cima do mar
e, sozinho, brilha:
inconsequente
diária
mente
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2 - RUINAS
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ofício
cor de lembrança:
imagens completam
as faltas
e ativam, faceiras,
o brilho solar
que aquece
as fissuras
molhadas
no louco afã
de não esquecer,
a maresia
que escorre no rosto
vem de dentro:
o mar dos olhos
transborda
e borda a moldura
tesa, dura
e pendurada
a perder
de vista
os restos,
aos poucos,
também se vão:
por ali, por acolá,
sem som, sem dó
nem piedade
suspiram e inspiram
saudade
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3 - DIA DE MAR
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dias de mar
é dia de mar
e é do mar
que se achega
a força
mas deixe o amarelo pálido
da areia
incendiar seus pés
é dia de dança
e bem na beira
coqueiros me seduzem
na eternidade passageira
da falésia
é dia de beijo
na alma e
no corpo
a entrega:
vento
cheiro
estouro
explosão
silêncio
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4 - TANTO MAR
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tanto mar
o tanto do mar
me assusta
ofusca o pedaço
que de mim
resta
e me dilui
no sal
no caminho,
lábios se desenham:
é prá lá que
me escorro
desmancho a doçura
sôfrega
na tontura que arranca
a pose e o batom
e, por lá,
me perco
no gozo
do todo
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5 - OFICIO
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oficio
lanço-me
nas águas
mas o barco é quem me alcança
barbatanas emboladas,
na cortante rede,
são prenúncios
de mutação:
passo-a-ser
alma de peixe
ferida e implantada
num corpo humano
sem escolha
num barco, à esmo,
invejo os peixes
viventes por dentro
e minhas novas mãos
de homem-pescador
empinam a frustrante rede
lançada ao mar
cotidiano estranho:
maldição umbilical
que me obriga
a pescar,
canibalmente,
meu próprio passado
na eternidade lacônica
e insistente
de um oceano
vazio
sou rio
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6 - VIDA NO MANGUE
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vida no mangue
não demore muito
a me notar:
daqui a pouco
me refugio
na minha toca
cheia de mim
é de lá que vivo
carangueijamente
a esperar
por seu beijo
mas, não se engane:
às vezes,
não espero
e a vida,
subitamente,
acontece
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7 - CONTEMPLAR
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contemplar
no templo
o instante sagrado
de ser
nas rochas
a sabedoria que acolhe
a passagem
no ar
gotas salgadas pulam
em travessura
o que me resta?
apenas o que foi
e o que não terá
sido
no tempo,
respiro
todas as montanhas,
águas doces,
querubins
e jardins
mas estou no mar:
diante do que basta
só
contemplo
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